Qual é a origem da língua cabo-verdiana?
O que é uma língua crioula?O cabo-verdiano deve ser língua de ensino em Cabo Verde?
A gramática de cada língua permite
criar um número infinito de frases, que nos deixam viver plenamente como seres
humanos. Será assim com todas as línguas?
Nem por isso. Há línguas
incompletas, línguas que não nos permitem dizer tudo o que queremos. Quando uma
população é constituída por gente de vários locais, sem uma língua comum, as
pessoas começam a criar uma língua improvisada, feita de palavras de várias
línguas, sem grandes regras. É aquilo a que os linguistas chamam pidgin:
uma língua de contacto. Estes pidgins apareceram, ao longo da
História, em vários pontos do mundo. Um pidgin não é uma
língua completa. Não é, aliás, a língua materna de ninguém.
Ora, o que acontece quando uma
geração de crianças aprende um pidgin como língua materna?
Aprendem uma língua incompleta, para sempre impedidos de expressar tudo o que
querem?
Não. Transformam o pidgin numa
língua completa, com gramática e todas as características duma língua humana.
Estas novas línguas chamam-se crioulos. A palavra não designa uma
só língua, mas antes um tipo de língua. Cada crioulo tem uma gramática própria,
feita de regras bem definidas, como qualquer outra língua.
Embora existam crioulos em muitos
lugares do mundo, a palavra está especialmente associada a certas línguas
faladas em territórios que foram importantes no comércio atlântico de escravos.
Há vários crioulos nas Caraíbas e em zonas costeiras de África.
As primeiras crianças que nasceram
em comunidades de escravos onde se falava um pidgin pegaram na
língua incompleta que ouviam à sua volta e criaram uma língua completa. Este
salto geracional deixa vestígios: a gramática dos crioulos não apresenta certo
tipo de construções típicas das línguas que já levam muitos milénios de
mudança, constituindo uma espécie de gramática lavada, com menos
irregularidades e redundâncias — mas tão capaz como qualquer uma das velhas
línguas de expressar o que vai na alma dos falantes. (Como em tudo, há várias
teorias e bastante discussão sobre a origem e o desenvolvimento dos crioulos.
Quem quiser conhecer mais a fundo o debate sobre estas línguas no âmbito
técnico da linguística, pode começar por ler o livro The Creole Debate,
do linguista John McWhorter, autor que defende a perspectiva que descrevi
acima.)
Os escravos viviam entre gente de
muitas línguas diferentes, criando comunidades improvisadas à força, governados
por quem falava uma língua distante, de onde tiravam palavras úteis. Que as suas
crianças tenham produzido línguas novas, com gramáticas completas e
interessantes, mostra algo muito importante sobre a linguagem e o cérebro
humano.
Esta é, em traços largos, a origem
dos crioulos, incluindo o cabo-verdiano. É uma história já com alguns séculos,
interessante e importante para compreender a História do mundo.
Longe de serem línguas
incompletas, os crioulos são uma demonstração da capacidade linguística do ser
humano, mesmo em situações desesperadas. Alguns destes crioulos já têm padrão
escrito estabilizado e são línguas oficiais. Outros, como o cabo-verdiano,
estão a percorrer esse caminho.
Há países onde a população fala um
crioulo há muitos séculos, mas as instituições e as escolas usam outra língua,
normalmente a língua europeia que deu origem ao léxico do crioulo. Dois
exemplos são o Haiti e Cabo Verde.
O Haiti já considera, hoje em dia,
o haitiano como uma das duas línguas oficiais (a outra é o francês). As escolas
começam a ensinar a escrita e a leitura em haitiano. Cabo Verde ainda não deu
esse passo. O português ainda é a única língua do ensino.
Muitos perguntam: porquê abandonar
o português e abraçar no ensino uma língua, certamente respeitável, mas falada
apenas no país?
Ora, esta pergunta, que ouvi de
muitas bocas nas últimas semanas, revela dois enganos.
A primeira ideia errada é
considerar que é fácil ensinar a ler e a escrever numa língua que não é a
língua materna da população. Apesar de haver uma relação forte entre o
português e o cabo-verdiano, são línguas com gramáticas muito diferentes. No
fundo, o que as crianças cabo-verdianas passam, quando chegam à escola, é
semelhante ao que passariam as crianças portuguesas se chegassem à escola e
lhes fosse ensinado, sem mais nada, a escrita e a leitura em latim. As
dificuldades seriam mais que muitas — e provavelmente uma grande parte acabaria
por não saber escrever bem nem latim nem, muito menos, português.
O outro grande engano é pensar que
ensinar cabo-verdiano aos cabo-verdianos é afastá-los do português. A
aprendizagem da escrita na língua materna ajuda não só a aprender a ler e a
escrever na língua em que pensamos, como é um passo importante para que
possamos, com confiança, aprender uma segunda língua, em paralelo, com técnicas
de ensino adequadas à situação. Assim, se o cabo-verdiano se tornar a língua do
ensino inicial em Cabo Verde, não me espanta que tal melhore o ensino do
português no país.
Parece-nos estranho a nós,
habitantes dum país praticamente monolingue, mas os miúdos conseguem aprender
bem várias línguas. Um bom exemplo será o Luxemburgo, onde os alunos começam a
aprendizagem em luxemburguês — uma língua menos falada do que o cabo-verdiano e
que tem um padrão recentíssimo: foi criado durante o século XX —, para depois
avançarem com o francês e o alemão. No fim, ficam a saber ler, escrever e falar
nas três línguas.
Tal como o Luxemburgo teve de
padronizar a sua língua para poder usá-la no ensino, há um caminho a percorrer
no caso do cabo-verdiano, uma língua com uma grande variedade interna e várias
propostas de ortografia.
Seja como for, parece-me
perfeitamente razoável que um país dê dignidade institucional à língua materna
da população e que seja nessa língua que se ensine a ler e a escrever. Sei que
a nossa tendência será considerar tal facto um afastamento em relação à nossa
língua, mas é falso: os cabo-verdianos falam outra língua há séculos e, pelo
que sei, continuam empenhados em aprender e ensinar português. Que, em
paralelo, invistam na sua língua materna só me parece de louvar.
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